quinta-feira, 12 de julho de 2012

“Fazia o suficiente para trazer esperança para as pessoas”




Jornal Testemunho de Fé






“A preocupação com o homem, a preocupação com o seu interior” — como o próprio Cardeal Dom Eugenio Sales disse em entrevista exclusiva ao jornal “Testemunho de Fé”, por ocasião da celebração dos seus 90 anos de vida — fez deste, até então Arcebispo Emérito do Rio de Janeiro, o homem religioso dedicado às causas sociais de sua época.

Neste momento de dor, publicamos novamente este texto, com a certeza de que as palavras de Dom Eugenio, assim como toda a sua obra pela Igreja no Rio de Janeiro, são consolo e incentivo para a missão cristã e, ao mesmo tempo, revelam características importantes desse extremado pastor. Ele, que percebeu seu chamado à vida religiosa muito cedo e disse o seu sim, tendo o coração aberto para que a fé o aproximasse dos problemas do homem para que, então, ele cumprisse a sua missão de aproximar o homem da fé.

Testemunho de Fé – Durante a sua infância, qual era o relacionamento de Vossa Eminência com a Igreja?

Cardeal Dom Eugenio Sales – Eu recebi a fé através dos meus pais. A minha veia religiosa veio a partir daí, e com isto, toda a minha preocupação com a fé.

TF – Como Vossa Eminência sentiu o chamado para ser sacerdote?

Dom Eugenio – Eu fui estudar num colégio, e veio o desejo de ser sacerdote muito cedo, mas eu não podia. O meu pai foi conversar com o diretor do colégio para saber o que fazer e pedir orientação. Então, eles combinaram que eu deveria terminar o colégio, e depois é que eu iria para o seminário. Assim foi feito. Eu fiz Humanidades no colégio. Não ia ser padre, eu queria ser agrônomo e ia fazer vestibular para a escola de agronomia, em Pernambuco, mas, depois de ficar com os documentos para fazer vestibular, eu decidi que já tinha essa vontade. Então, eu resolvi ir para o seminário. Quando eu terminei os estudos de Humanidades, eu entrei no seminário do colégio dos irmãos maristas.

TF – Quando e como surgiu a sua identificação com o apóstolo São Paulo?

Dom Eugenio – Realmente eu tenho uma devoção especial pelo apóstolo São Paulo. Diria que foi conhecendo a atividade dele, o caráter, a religiosidade. Eu fui me entusiasmando e, por isso, eu tenho uma devoção muito grande.

TF – Depois que o senhor foi nomeado bispo, tornou-se precursor em ações pastorais. Quais os motivos que o levaram a fazer estas ações?

Dom Eugenio – Procurando realização. Eu desejava ser padre, aí a própria vida religiosa me fez esclarecer mais a minha fé. A preocupação com o homem, a preocupação com o seu interior, isso me marcou bastante, e procurei, no estudo do seminário, o que era necessário, além do sacerdócio, também o cuidado com essa atividade, sendo aplicada concretamente nas circunstâncias do estado onde eu estava. Então, saí do seminário já bastante motivado pelos problemas do homem, como a pobreza, e de como resolvê-la.

TF – É verdade que o senhor não foi transferido para Salvador por vontade própria? Como foi o período de adaptação lá?

Dom Eugenio – Um padre está à disposição da Igreja. Eu estava muito bem em Natal. Estavam crescendo as coisas. Eu não visava deixar o local, mas eu sou da Igreja, não discuti o assunto, fui para Bahia. De Salvador, o Papa decidiu que eu fosse para o Rio de Janeiro. Não foi fácil também sair de Salvador porque eu estava enraizado lá. A gente está para servir, então vim para o Rio, fiquei até agora.

TF – O que o senhor destaca do tempo do seu governo em Salvador?

Dom Eugenio – O ponto marcante era o trabalho de organização dos sindicatos. O que estava fazendo em Natal, que era uma cidade pequena naquele tempo, eu fui transportando, tomando um cunho nacional, como as escolas radiofônicas. Não era uma aplicação pura e simples, mas eram as lições que eu ia aprendendo e procurei aplicar também em Salvador.

TF – Como foi a continuidade dos trabalhos sociais no Rio de Janeiro?

Dom Eugenio – Já havia muito trabalho social com o cardeal Câmara. Não fui eu quem criou isto. Eu encontrei uma diocese grande em plena atividade. A experiência que eu vinha tendo em ponto menor, fui aplicando em um ponto maior, mas não era uma coisa independente da outra. O Rio já existia como Rio, não fui eu quem fiz. Mas eu procurei aproveitar todas as possibilidades para o Rio de Janeiro. O trabalho já existia, mas eu dei um ânimo novo. A diocese do Rio é uma diocese grande e muito organizada. Portanto, não houve uma coisa minha, eu pensei tocar para frente o que estava sendo feito.

TF – Quais os benefícios que as Conferências Episcopais da América Latina (Celam) trouxeram para a Igreja?

Dom Eugenio – O Celam é uma organização da Igreja da América Latina. O Brasil com os países da América Latina lucraram com a experiência mútua. Há um bispo que olha a América Latina toda, que é o presidente do Celam. Trabalhei no Celam na parte social.

TF – Durante o regime militar, o senhor recebeu e abrigou refugiados políticos no Palácio São Joaquim, além de apoiar os presos políticos. Este tipo de atitude não lhe trouxe problemas?

Dom Eugenio – Eu não tenho muitas reclamações a fazer. Nunca fui político, nunca provoquei, mas eu insistia, não conseguia tudo, mas fazia o suficiente para trazer esperança para as pessoas. A ditadura não era um regime desejado. Eu não sou político e nem excluía a política. Eu procurava entender e ajudar as pessoas que me procuravam, mas nunca disse que ia resolver. As pessoas chegavam desamparadas e me pediam hospedagem, então, eu procurava locais para abrigá-las. Durante o período militar passaram cinco mil refugiados, mas nem todos eram comunistas. Eu nunca interferi na parte ideológica. Eu primeiro rezava para saber se podia. Como brasileiro, eu não podia me descuidar, mas como ministro de Deus, devia amparar essas pessoas. Então, foram amparados, e procurava não interferir nas ideias deles. Passaram muitos por aqui, famílias inteiras.

TF – O senhor poderia comentar sobre o caso do preso político que o senhor conseguiu libertar antes do Natal...

Dom Eugenio – Sim, era um estudante que se formou em medicina. Ele não era muito católico, mas a família dele tinha relações comigo. Um dia, ele foi preso. Torturado, não sei. Eles me procuraram, mas eu não prometi nada, vi o que poderia fazer. Então, telefonei para o general Frota (Sylvio Frota), pedi para soltar essa pessoa. Ele foi expulso e depois voltou. Foi a sorte dele, porque não foi preso nem nada, e hoje é uma pessoa de destaque.

TF – O senhor, o Papa João Paulo II e a Pastoral das Favelas foram os responsáveis para que a comunidade do Vidigal não fosse removida. O senhor poderia comentar este caso.

Dom Eugenio – Sim. O trabalho com as favelas já existia aqui. Não fui eu quem organizou, eu apenas tentei movimentar. Num dado momento, queriam vender uma área onde é o Vidigal hoje e criar um plano político, social. Precisavam desapropriar os operários de lá e mandar para outra área do subúrbio. Os moradores me procuraram para dar assistência. Apelei para a Justiça com um advogado muito bom e foi uma causa ganha. Eles não foram removidos. Conseguiram uma ordem da Justiça impedindo a desapropriação. O Papa esteve no Vidigal e deu o seu anel para a comunidade. A associação de moradores foi a mim para que eu pudesse guardar o presente. Eu disse ‘não’. Dei um documento a eles, coloquei o anel no Museu de Arte Sacra e fiz outro igual, no valor também, que ficou com eles. Eles colocaram a réplica na capela com a luzinha acesa. Foi um gesto simbólico do Papa. Os moradores fizeram uma festa comovente, as pessoas cantaram e eles ainda hoje me procuram uma vez ou outra.

TF – Qual era a relação de Vossa Eminência com o Papa João Paulo II?

Dom Eugenio – Eu tive uma relação filial, digamos assim, com o Papa João Paulo II. Ele foi um homem muito generoso, bondoso e ajudou no que podia ajudar. Era uma relação de grande amizade. Nas duas vezes em que veio ao Rio, ficou hospedado na minha casa.

TF – Qual foi a sua melhor recordação enquanto arcebispo do Rio de Janeiro?

Dom Eugenio – Eu creio que a vinda do Papa aqui foi o ponto alto. Foi uma coisa assim extraordinária e comovente também que a gente vê resultados hoje ainda. Eu não atribuo as coisas a mim. Fui um instrumento de Deus para agir e com a contribuição de cada um.

Nenhum comentário:

Postar um comentário